“DEVIR”, de Ewertton Nunes – Dançando Almodóvar no Espaço Liso
“Tudo
flui e nada permanece, tudo dá forma e nada permanece fixo.
Você
não pode pisar duas vezes no mesmo rio,
pois
outras águas e ainda outras, vão fluir.”
(Heráclito
de Éfeso, 5.000 a.C.)
Logo nos primeiros instantes do espetáculo "Devir", o
espectador pode ter a estranha sensação de ter sido subitamente, sem nenhum
aviso, transportado para o interior de um filme de cinema: Após a
exibição dos créditos de abertura, com a imortal canção 'Ne me quite
pas' como música de fundo, a cena inicial de um notório filme do diretor
espanhol Pedro Almodóvar se desenrola diante de nossos olhos. Parcialmente
privados de nossa própria identidade coletiva pela escuridão da platéia, nos tornamos
a voz autoritária que ordena os passos minuciosamente coordenados de um joguete
erótico.
A
diferença fundamental aqui é que o olhar não está mais prisioneiro da câmera.
Liberado dos planos, recortes e re-enquadramentos, típicos da linguagem cinematográfica,
o espectador pode olhar por quanto tempo quiser, para o que quiser - ou desviar
o olhar, se puder... E há muito que
olhar. Os corpos dos atores dançam dramas curtos e intensos, movem-se
atleticamente por toda a extensão do palco, espreitam-se, tocam-se, escapam,
perseguem-se, colidem, submetidos a uma força tão irrefutável quanto a da
própria lei da gravidade: a lei do desejo. Nem sempre é possível
definir qual personagem se sujeita a quem. Até mesmo a submissão, nesta
frenética correnteza de psicodramas, pode ser paradoxalmente imposta ao
outro.
Como
nos filmes de Almodóvar, teatro e cinema se permeiam, comunicam-se. Figurino,
iluminação e elementos de cena se misturam à projeção de imagens da própria
peça em um telão no fundo do palco. Duas câmeras fixas e uma móvel registram as
cenas em diversos ângulos, projetam metalinguisticamente
as cenas, ora devolvendo as tramas cinematográficas ao seu habitat
natural - a tela grande - ora projetando as expressões das personagens em
monumentais recortes de luz e sombra, ora compondo um meta-cenário, ao destacar
elementos críticos da ação e aproximá-los.
Embutido no corpo do espetáculo, o aparato audiovisual opera
simultaneamente no nível da vigilância eletrônica e do voyeurismo.
Pausas para respirar são promovidas pelo silêncio e total escuridão no curto
intervalo que antecede cada uma das músicas-tema. De brinde, há um
desconcertante momento de "alívio cômico", onde a temática andrógina,
típica do diretor espanhol, se encontra da maneira mais improvável possível com
a irreverência nordestina de Jackson do Pandeiro!
Ao
final do espetáculo, os atores convidam o público para um bate-papo (agora já
estão todos íntimos... público e atores devassaram-se uns aos
outros...). Ewertton Nunes -
inquieto escritor-diretor-ator-coreógrafo-dançarino sergipano - ladeado pelos
versáteis membros da Espaço Liso Cia. de Dança, compartilha o
processo criativo, relatos, curiosidades, discutem abertamente as ressonâncias
do evento. Uma deliciosa sobremesa para o espírito que acaba de banquetear-se.
*Luciano Freitas é Servidor Público da Educação
e aluno do curso de Comunicação Social/Audiovisual da UFS
ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DA ESPAÇO LISO:
Ewertton Nunes